domingo, 31 de janeiro de 2010

A diferença entre a esposa e a namorada

Alguns amigos querem me corrigir quando chamo a minha esposa, Mariana, de namorada. Alegam que sou casado, e que essa troca de palavras faz dar a impressão de que quero esconder a união em cartório.

A verdade é que esse foi um trato que fiz com a Mari antes de obtermos a tal certidão de casamento – um documento que serve apenas para garantir a comunhão do convênio médico.

Combinamos que, mesmo casados, continuaríamos nos chamando de namorados. Isso porque gostaríamos de nos namorarmos sempre, ainda que estivéssemos juntos de papel passado – fato que não costuma ocorrer em grande parte dos casamentos.

Assim, chamá-la de namorada não significa ter saudades dos tempos de solteiro. Pelo contrário. Significa continuarmos nos amando como sempre, independentemente de um pedaço de papel que diz pouco sobre sentimentos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A crase poética de dar à luz

Hoje escrevi uma matéria sobre o raro nascimento de um peixe-boi em cativeiro e quis usar a expressão “dar à luz”. Fiquei em dúvida se a crase era necessária, e percebi que a expressão tinha significado com ou sem acento grave.

Se a mulher dá a luz a um bebê, sem crase, ela ilumina o rebento. Tira a criança do escuro de seu útero e lhe mostra a claridade do mundo.

Se a mulher dá à luz um bebê (esta, a expressão correta), quem recebe a criança é a luz. É como se o universo – o mundo, o sol, as estrelas – ganhasse um novo membro.

Muito mais poética a segunda opção, não? E para quem acha que isso não faz o menor sentido, saiba que os gênios da Disney usaram a força dessa ideia em uma das cenas mais inesquecíveis de suas animações: o nascimento do pequeno Simba, o Rei Leão.

sábado, 21 de março de 2009

Mardita luz elétrica

Lá na roça, pelo menos uma vez por semana a energia elétrica desaparecia. Era sempre nos piores momentos. Quando eu estava todo ensaboado no banho, quando a novela chegava perto do fim, quando estava chovendo e tínhamos que estancar as goteiras.

– Mãe, acabou a força!

A verdade é que eu e meus irmãos gostávamos muito. Tirando o banho frio, a falta de energia era só alegria. A família se reunia em volta de dois lampiões a gás, e meus pais eram obrigados a inventar algum jogo para nos entretermos até a hora de dormir. Ficávamos todos em volta da mesa da cozinha, ouvindo o chhhhhh do gás saindo e se transformando em luz.

O único momento em que me passava um frio pela espinha era na hora em que as lâmpadas se se apagavam de repente, e com o fim do barulho da televisão surgiam todos os roncos, estalos e rumores do mato que rodeava a casa. Eu já sabia o que minha mãe iria pedir.

– Iberê, vai pegar os lampiões enquanto eu busco o fósforo! – ou o contrário.

Naquele pequeno espaço de tempo em que a escuridão dominava, e eu enfiava a mão na gaveta do armário procurando a caixinha áspera dos palitos de fósforo, sempre vinham à memória as histórias de assombração que o nosso vizinho, o Marcelo, nos contava.

Ele era um dos poucos ali nas redondezas que sabia descrever, com todos os detalhes, a fisionomia de um saci. Um negrinho pequeno, feinho que dói. Andava pitando um cachimbo velho e aparecia de
noite, quando os cavalos estavam dormindo. Assustava e fazia trança na crina dos animais. Quando era de madrugada e os bichos começavam a se agitar muito, era batata: tinha saci rondando o curral.

Mais intrigante era o boitatá, que só aparecia nos brejos. Era uma luz muito forte, que passava rápido. Às vezes surgia longe, no céu, outras vezes tirava faísca das calças da gente. Mas o Marcelo não sabia que mal a tal cobra de fogo poderia fazer pra gente.

Perigoso mesmo era o lobisomem. Nas noites de lua cheia, batia de noite na porta das casas, pedindo sal. E ai de quem não tivesse! Não havia fuzil que desse conta do bicho.

Quando perguntávamos se assombração existia mesmo, ele garantia que já tinha visto várias, e que eram muito comuns quando o Nhô Bino, seu pai, era menino. Agora já não havia mais tanto. Elas gostavam mesmo era do escuro, e quando chegou a luz elétrica pararam de aparecer.

Na época, eu não acreditava muito, não. Mas hoje, pensando bem, o Marcelo estava certo. Foi tudo culpa da luz elétrica.

Pólvora, bucha e pedriscos

Naquele tempo, a gente morava no meio do mato. Era uma casinha branca feita de tábuas, e ficava no pé da montanha. Uma estrada de terra, cercada de árvores, dividia o pasto da floresta e levava até o topo do morro, onde ficava a casinha do trator.

A brincadeira preferida minha e do meu irmão era subir até a casinha do trator e descer de bicicleta. A estradinha era cheia de buracos, formados pela chuva, que deixavam a aventura mais interessante. Uma vez, a roda da bicicleta do Cauê entrou num desses buracos, a mil por hora. Foi um deus-nos-acuda. Meses para saírem todas as casquinhas dos arranhões.

A casinha do trator era uma choça com três paredes de madeira podre. Quatro postes grossos nos cantos, feitos de aroeira, seguravam a estrutura. Como não esperaram a aroeira secar para enterrar os postes, os troncos brotaram, e a pequena casinha ficou esmagada entre quatro árvores.

O dono do trator era o Marcelo, que andava pra cima e pra baixo puxando um burro velho, sempre seguido por alguns cachorros. Como o trator não tinha bateria, tinha que ser deixado lá em cima, pra pegar no tranco. Lá de casa a gente ouvia: pápápápá. Era ele ligando o trator, tirando uma fumaça grossa do Massey Ferguson enferrujado.

Sempre de camisa branca suja de terra, a diversão do Marcelo era contar histórias pra criançada. Ele era solteiro e morava sozinhho em uma casa grande de tijolos. Só de tijolos. Não tinha piso, reboque, nem forro. As portas e janelas eram de madeira velha, acinzentada. Como era o único dos cinco irmãos que não tinha casado, acabou dividindo com os cachorros o casarão quando o pai, o Nhô Bino, morreu.

A cozinha era o maior cômodo da casa. Tinha uma janela em cima da pia, com vista para o esgoto que vazava ali mesmo, no quintal. Do outro lado, no canto, ficava um grande fogão a lenha, sempre com alguma brazinha pronta para ser reavivada. Era lá, no meio dos arreios do burro, sabugos de milho e dos quadros trazidos de Aparecida do Norte, que cada um sentava num canto e ouvia as histórias dele.

Sempre com um cigarro de palha no canto da boca, um dos causos que ele mais gostava de contar era do tiro que havia levado no pescoço. Apontava para as duas armas velhas penduradas na parede, mostrava uma cicatriz meio apagada logo abaixo do queixo, e começava.

Dizia que a espingarda, aquela menorzinha, era arma de caça. Já tinha matado muita paca, capivara, cotia e veado com a bichinha. Era muito antiga, do tipo pica-pau, e não usava cartuchos. Para carregar a munição, era preciso encaixar a espoleta do lado de fora. Dentro do cano, colocava-se pólvora, um pedaço de papel amassado – a bucha –, chumbo e outra bucha. Depois era necessário socar com uma vareta, com muito cuidado pra pólvora não explodir.

A outra ali, maior, era um fuzil, arma de atirar em gente. Um soldado havia dado ao pai dele depois da guerra de 1932. Ele jurava que até hoje, se alguém procurasse com cuidado, ainda dava pra encontrar cápsulas das balas dos fuzis no meio do mato, tamanha tinha sido a briga entre os paulistas e os gaúchos, que subiram pela serra para defender Getúlio Vargas.

Mas o tiro que ele levou não tinha nada a ver com isso, não. O problema foi que algum desavisado havia deixado a espingarda carregada dependurada em cima do fogão a lenha. Com o calor, a pica-pau disparou e acertou o seu pescoço. A sorte é que só tinha pólvora e bucha, não tinham colocado chumbo.

E foi de tanto o Marcelo - que chamávamos de Güelo - contar essa história da espingarda que nós enchemos o saco para ele dar um tiro com a pica-pau. Ele relutou bastante, disse que não tinha espoleta, que já não se vendia mais pólvora no armazém, e que a arma não aceitava cartucho.

Ficou nessa lengalenga, até que um dia alguém apareceu com um saquinho branco de papel cheio de pó preto em uma mão, e na outra uns copinhos de cobre bem pequenininhos. A pólvora e a espoleta. Era o que faltava para vermos a espingarda em ação.

Ele não ficou muito feliz. Disse que a arma era velha demais, que era perigoso atirar com criança por perto, que o tiro podia sair pela culatra. Mas como era questão de honra, catou uma vareta, jogou a pólvora dentro do cano, colocou um pedaço de papel, botou umas pedras - não tinha chumbo - e outro pedaço de papel. Socou bem socadinho e saiu na porta do casarão.

Quando apoiou a espingarda no ombro e alinhou a mira com os olhos, começou a suar frio. Já havia uma meia dúzia de moleques em volta, e começavam a chegar mais. Ele falou que estava ficando muito perigoso, e resolveu melhorar a segurança: pegou uma corda e um barbante. Com uma, amarrou a espingarda em um poste. Com o outro, deu um nó no gatilho. E foi assim, com as pernas bambas, que ele puxou o cordãozinho. Uma, duas, três vezes, e nada da pica-pau atirar.

Todo mundo já estava meio desenxabido quando chegou o Zé, que já era moleque crescido, e começou a caçoar da cena montada. Uma espingarda amarrada no poste! Ele desentrelaçou a corda, trocou a espoleta e colocou uma lata de óleo bem longe, em cima de uma pedra. Falou pra gente se afastar, ajeitou bem a espingarda e bum!

Fez um barulho ensurdecedor e uma fumaceira branca tomou conta do lugar. No meio do cheiro da pólvora queimada, ficou lá a lata, inteirinha, inteirinha.

Depois desse episódio, o Güelo nunca mais voltou a falar do tiro no pescoço. Tirou até a pica-pau e o fuzil da parede, e agora só contava história de assombração.

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Nó de forca

Parado em pé, com as mãos cruzadas atrás da cintura, sentia um pingo de suor fazendo-lhe cócegas ao lado do olho esquerdo, mas não podia levantar os braços. Com lágrimas corpulentas e soluços descontrolados, sua mãe não conseguia esconder o desespero por perdê-lo assim, tão novo, e tirava dele o centro das atenções. O nó apertado no pescoço e o padre ansioso à espera do algoz lhes faziam pesar ainda mais a culpa, que até então não havia aparecido de forma tão sólida. Naquele momento, já não havia idéia mirabolante que pudesse tirá-lo da forca.

Entorpecido pelas tantas reviravoltas que sua vida dera nos últimos cinco meses, torcia com toda a força para o acontecimento de apenas mais uma: que a noiva não chegasse. Apesar de muito ciente da impontualidade dela, havia um fiozinho de esperança de que o atraso fosse definitivo. Carro roubado, rasgo no vestido, atentado, assalto, qualquer coisa servia naquela hora.

Os padrinhos, em meia-lua no altar, formavam dois grupos de expressões distintas. Do lado esquerdo, os sorridentes alisavam a barriga orgulhosos de dar cabo à última solteira feia da família dos Moratti. À direita, os Bezerra não se atreviam a fazer cara de contentes. Amparando a mãe, os amigos do noivo não se davam ao trabalho de esconder a contrariedade, e só haviam aceitado o convite por saber que o pai se esforçara por mais de três semanas, mas não conseguira demovê-lo da idéia. Não havia outro caminho que não fosse subir no altar.

A verdade é que Marquinhos se movia pelo medo, e a braveza do sogro superara a do pai. No momento em que Miriane voltou do banheiro segurando na ponta dos dedos a pequena fita branca de papel pintada de azul, em poucos segundos um tufão devastou a vidinha de final de adolescência. Arrancou os CDs da prateleira, despregou os pôsteres da parede, varreu as revistinhas de violão, desfolhou as apostilas do cursinho, levou para sempre os amigos da cervejada. Agora, tudo o que conseguia ver eram os bigodes grossos de Aristeu, gritando: "Engravidou, tem que casar!"

E não foi muito diferente. O que ele não havia previsto era a empolgação da família da menina. Em uma semana já tinham planejado o bifê, os eletrodomésticos da casa nova, o hospital em que nasceria o bebê e tudo mais o que se pudesse arrancar dos avós paternos, que imploravam para que o filho entendesse que gravidez, naquela época, já não era mais sinônimo de casamento.

Durante quatro meses e meio, o casal peregrinou por shoppings, lojas de móveis, decoradores, ourives, até chegar o momento que Miriane mais esperava: o alfaiate.

Descalça sobre o banquinho, exibia orgulhosa a medida das curvas que enlouqueceram Marquinhos e os fizeram transar sem camisinha aos dois meses de namoro. Foi assim, no passa fita daqui, prega dali, mede acolá, que a menina perdeu o equilíbrio, e Vítor Marcelo – ou Vitória Marcelle, como torcia a mãe – forçou a reunião das famílias a duas semanas do casamento, numa cerimônia de enterro.

E se a fitinha do teste de gravidez levara dele os sonhos da juventude, os torrões de solo vermelho chocando-se contra o branco do caixãozinho faziam-no velho de vez, enterrando ali o pouquinho de vida que o futuro lhe reservava.

Quinze dias depois, ao pé do altar, o gogó enroscava no nó da gravata no momento em que o menino olhava para a mãe, desconsolada. As mãos dos músicos sobre as trombetas começavam a suar, esperando a noiva atrasada, e um burburinho chacoalhava os quadros da via sacra pendurados na catedral.

Na espera que se esticava, as crianças se ouriçavam, despenteando o cabelo que as mães carinhosamente haviam alinhado. Um moleque baixinho, desses na idade dos porquês, não agüentava mais ficar sentado. Na sua inquietude, saiu desbravando os cantos da igreja. Foi assim que encontrou uma portinha aberta, como a de um banheiro, e depois da porta, uma corda pendurada.

A badalada inesperada do sino disparou o coração de Marquinhos. Num lampejo atlético, suas pernas seguiram o coração, e dispararam também, atravessando velozes o tapete vermelho que cruzava a multidão. Em passadas ofegantes, o noivo quebrava o compromisso que o unia às centenas de convidados levados por Aristeu.

As cabeças todas viraram afoitas para a porta, por onde o menino desaparecia, enquanto um leve esboço de sorriso se fazia sob a maquiagem que escorria no rosto da mãe.

domingo, 6 de agosto de 2006

No tombo do cedro

Com grande esforço, colocava meia dúzia de pertences dentro da mala pequena. Alguns documentos, fotos, toalha. Não levaria praticamente nada. Ficariam para trás um guarda-roupa cheio, muitos livros e aparelhos eletrônicos.

Ela sentava no canto do quarto. Observava-o imóvel, tentando trocar um olhar, que não vinha. Um muro invisível os separava. Ainda que não tivessem conversado, sentia que aqueles poucos gestos poderiam ser os últimos, e continha sua habitual agitação e manifestações de afeto.

Fazia cinco dias que ele não ia mais para o trabalho. As lixeiras da casa estavam quase todas cheias, enquanto a dispensa transbordava comida enlatada e sacos de arroz. Ela queria pedir explicações, saber o porquê de suas dobras na testa, das sobrancelhas pendentes, da pilha de garrafas de vodca vazias na garagem, mas as palavras não surgiam na hora de falar.

Com uma bola de tênis entalada na garganta, ele se esforçava para não explodir em prantos. A dor por não levar nada da vida que demorara tanto para construir não necessitava de um adendo. Além disso, pobre coitada. Que os últimos momentos fossem, pelo menos, serenos.

Por que a abandonava? Ela, que sempre estivera ao seu lado, todos os dias ali no portão, despedindo-se e esperando-o, não merecia ser deixada assim, sem mais delongas. Viviam juntos havia quatro anos, sem nunca uma pendencinha sequer ter arranhado o carinho que nutriam. Seria seu jeito atrapalhado, de nunca conseguir ter dito que gostava tanto dele? Seria largada ali, sem seu único conforto na vida, que era o afagar de suas mãos de homem?

Não, não era por falta de querê-la. De tudo o que deixava, ela era o que mais lhe faltaria. Seu desejo maior, naquela hora, era o de poder encontrar alguém que a amasse mais do que ele amara. Não a deixava por vontade. Era questão de sobrevivência, e não podia levá-la consigo.

A mala estava quase cheia. Como se levantasse um botijão de gás, ele pegou o vidrinho de antidepressivos e acomodou ao lado das passagens e do passaporte. Trancou os fechos e levantou-se.

Ela ergueu a cabeça e sentiu que era o instante de exigir-lhe explicações. Parou em frente à porta obstruindo a passagem, e olhou suplicante.

Ele se abaixou, pousou a mão sobre sua cabeça e beijou-lhe o pêlo marrom.

– Fica bem, Laika.

Pela primeira vez, saiu deixando o portão aberto. Sem ter coragem de olhar para trás, bateu a porta do táxi, que arrancou cantando os pneus, temeroso por transformar-se em alvo de mais um míssil de Israel.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Grávida de palavras

Estava grávida de palavras. Sentia que estavam já quase saindo de suas entranhas, perto do momento de parir. Andava inquieta pelos cantos, a mexer no cabelo, cutucar as unhas, beliscar pedaços de queijo e toucinho na geladeira. Quando mais comia, sentia que as palavras tentavam devorar o alimento que colocava goela abaixo, e se empanturrava mais, estufando a barriga pequena, já farta de guloseimas e de letras em formação.

Não sabia ainda se seria um livro, poema, romance, manifesto ou até mesmo um bilhete. As contrações vinham fortes, mas não chegava a hora de botar as criaturas para fora. Seriam gêmeas? Trigêmeas? Poligêmeas idênticas? Era difícil medir o grau de irmandade de palavras.

Tinha certeza, apenas, de que não seriam fracas. Junto delas havia gestado um pouco de indignação, de idéias contidas, de frases inacabadas e vontades de gritar. Certa vez, sua revolta crescera tanto que pegou uma faca e colocou o metal afiado sobre o pulso, brincando de cortar a pequena linha que separa a vida da morte.

Surgiu outra solução. Em vez de derramar sangue sobre o assoalho por culpa de idéias controversas, resolveu derramar tinta azul sobre papéis, e desde então engravidou-se de palavras.

Se tinham pai? Tinham vários, mas ela não tinha certeza de quem realmente era. Poderia ser a escola, que sempre reprimira sua vontade de se manifestar, ou os pais, que não a entendiam, por mais que se esforçassem. Mas ela acreditava, mesmo, que era produção independente. Nessa época de clones, DNA e o escambau, já não era tão estranho que os filhos nascessem só de mãe.

A parteira poderia ser a velha e boa caneta, uma máquina de escrever antiga que o avô abandonara empoeirada num canto, ou até mesmo as teclas tecnológicas do laptop. O importante é que nascessem em um ambiente limpo, livre de interferências do telefone, dos futuros tios ou da luz excessiva que entrava pelas janelas naquele verão de aquecimento global.

Não se preocupava muito com a criação. Nasceriam fortes, direitas. Algumas correçõezinhas aqui e ali resolveriam qualquer qüiproquó. Atentava-se apenas para o rumo que poderiam tomar. Se fossem demasiado revoltosas, trariam complicações à mãe, certamente.

Nove meses não seriam necessários. Gestação de palavras não se faz assim, de lei biológica. Algumas nascem quase cuspidas, no quente da emoção. Outras necessitam muito tempo para conseguir se livrar do útero, e há ainda as que se prendem à mãe como canguru, se protegendo do mundo alheio enquanto não se fortalecem por completo.

E foi assim, de tanto cuidar da beleza e dos finos dotes que desejava imprimir às novas criaturinhas, que acabou por perdê-las. Nasceram feias, tortas, despejadas em um caderno azul que deixara ao lado da cama numa daquelas noites de calor suado.

Rejeitadas pela mãe, que não conseguiu realizar nelas seus desejos, foram abandonadas em uma lata de lixo na esquina. Meses depois, a menina viu na TV o fantástico caso do mendigo que se tornara fabuloso escritor.

quarta-feira, 24 de agosto de 2005

Tamagochi

Já era a quarta vez que a mãe batia na porta do quarto, mas ele não respondia. Com a testa apoiada no vidro da janela, tenvava chorar vendo as gotas de chuva escorrerem pela vidraça.

De uma hora para outra, não gostava mais dos objetos do quarto. Olhava o abajur imaginando espatifá-lo sobre as fotos de criança, varrendo a estantezinha dos carrinhos de fricção e o pote de bolinhas de gude, que ainda guardava. Tudo parecia ridículo perto do que sentia. Esfregava os olhos, fazia caretas, e apenas seu estômago parecia querer chorar, esparramando o suco corrosivo pelas entranhas, queimando-o de dor.

As imagens teimavam em persegui-lo, e se repetiam em flashes. O ônibus, a serra, a garoa fina, os ferros retorcidos e o vestido azul sobre a maca, a cor que escolheram para o encontro no terminal Tietê. Não, não era a Régis esburacada, pois sempre fora. Sábados chuvosos também não são incomuns, e motoristas imprudentes qualquer rodovia tem.

Fora ele quem insistira para Daniela vir. Ela hesitou durante meses. Tinha que driblar os pais, arrumar uma desculpa mirabolante, juntar dinheiro e, além de tudo, só poderia ir no sábado e voltar no domingo. E olha que a viagem de Curitiba para lá consumiria pelo menos umas sete horas.

Mas já era hora de vê-la. Fazia exatamente um ano e meio que se conheceram em uma sala de bate papo. Foram meses trocando mensagens todos os dias até ela mandar a primeira foto. Não era do tipo que qualquer um achasse linda. Baixinha, tinha olhos pequenos, pele branquinha, bochechas rosadas e o mesmo cabelo vermelho que viu se confundindo às faixas sanguentas que enrolavam a inerte menina na maca.

Como tudo o que se perde, sabia agora o quanto lhe valia. Gostava dela. Era a única pessoa que entendia suas lamúrias de adolescente, que não o julgava anti-social, a quem podia contar todos seus segredos e medos. Gostava até mais que dos amigos do colégio, que o apelidaram de Tamagochi, o bichinho virtual, depois de descobrirem seu interesse pela menina da internet.

Tudo bem, naquele sábado tiraria a desforra. Iria tocar na apresentação de sua banda na escola. Nunca o viram acompanhado, e não perderiam por esperar. Chegaria de mãos dadas, de gel no cabelo e um sorriso satisfeito. Queria ver quem lhe chamaria de Tamagochi!

Mas inventou de ligar a TV para apartar a ansiedade, e deu de cara com o jornal impiedoso, de ônibus virado e letras brancas no fundo vermelho: "Acidente na Régis Bitterncourt fere 25 e mata menina de 16".

É claro que não poderia ser. O vestido era o combinado, os cabelos iguais aos das fotos, a estrada era a mesma, o celular não atendia, mas era real demais para acreditar. Bastava manter a calma, e tudo iria dar certo. Não poderia ser.

Com mãos trêmulas e sorriso pálido, despedira-se da mãe e fora até o terminal no horário combinado. De longe viu o tumulto de parentes na plataforma, e a cotoveladas conseguiu ver com os próprios olhos o que ainda não podia crer. O ônibus acidentado partira no horário em que ela disse que sairia. A atendente da viação, percebendo o espanto angustiante em seu rosto, perguntou delicada se ele conhecia a menina que falecera. Não, ainda não conhecia.

Desde então estava ali trancado, tentando expurgar por meio de lágrimas um pouco da dor que prometia esconder, mas não conseguia. A inaptidão para chorar, motivo de orgulho quando criança, agora se traduzia em dores de cabeça, vertigens, azias e pontadas no estômago.

Assim foi durante dias e dias. Não teve coragem de ligar para a casa dela, nem de acompanhar o desenrolar da tragédia pela televisão. Não falava com os amigos nem com a mãe, e não ousou sequer chegar perto do computador. Sabia que quando o ligasse todas as marcas dela estariam lá, desrespeitosas pela morte. O catálogo de endereços, as fotos, a carinha no MSN.

Foi apenas depois de dois meses que tomou coragem e ligou máquina. Trabalho de escola, não tinha como não fazer. Mas antes de apertar o primeiro botão, tomou a decisão: não faria um velório virtual. Já sofrera o suficiente, segurando sozinho aquela morte pela TV, e apagar um por um os rastros de Daniela seria remexer uma dor que aos poucos já se dissipava.

Devagar, fazia a vida ir voltando aos eixos. Tentava preencher as noites de bate-papo com ensaios na guitarra, agora sua melhor e única amiga. O estômago calara-se, a cabeça já não doía, e ele conseguia passar horas sem ter que lembrar.

Sentia falta mesmo era dos conselhos, das risadas em conjunto. Pelo menos, agora já acreditava que o peso da fatalidade não era somente dele. Havia poucas chances de algo dar tão errado, mas deu. E ele que ficou, teria que continuar.

Foi quando naquela tarde algo estranho aconteceu. Com a mesma foto da sexta-feira, a da última conversa, uma janela piscou no canto direito da tela do seu computador. "Vc taih?". Como bicho que foge, arrancou o fio da tomada. Afastou a cadeira, e depois de três respiradas a fundo, sobreveio a raiva. Que raios de criatura insensível haveria de fazer uma brincadeira de tremendo mau gosto?

Com os olhos faiscantes, colocou de volta a tomada e foi tirar satisfações com a besta humana que brincava com coisas tão sérias. Mas não estava mais lá. Esperou as estrelas chegarem e o sol voltar, decidido a dar uma tremenda bronca, mas ninguém apareceu.

Alguns dias depois, quando a raiva amainara, apareceu novamente a janelinha. O susto foi quase o mesmo, mas a tomada continuou plugada. "Vc taih?". Ah! Mas ele iria pegar o desgraçado! E resolveu mudar de tática. Se desse bronca, corria o risco de afugentá-lo. Jogo é jogo. Queria ver onde isso iria dar. Com um nó na garganta, mas decidido, começou a responder como se nada tivesse acontecido.

A maneira de conversar era a mesma. Os cás no lugar dos quês, os xises sobre os esses, os tês dobrados e todas as abreviações possíveis, além das caretinhas de pontuação. O desgraçado sabia um pouco dela. Começou a ir mais a fundo, jogando perguntas pessoais. Soube notícias do cachorro, do vizinho chato, dos passeios no Jardim Botânico... De fato, o maldito era de perto. Apelou para intimidades. Desafetos familiares, complexos de magreza, crises de adolescente e até as fantasias sexuais. Era tudo igual. Grande filho da puta!

Só não teve coragem de falar do acidente. Nunca contara a ninguém, e tinha medo estar caindo em armadilhas. Além disso, apesar do mal estar, algum prazer lhe surgia ao conversar com alguém que a conhecia tão bem, e imitava seu jeito com tanta semelhança.

No dia seguinte, voltou da escola inquieto para continuar a conversa. Contou das notas baixas, da eterna distância do pai, do apelido de Tamagochi que tanto o irritava (e que nunca perdera). Desta vez o pegaria. Não era possível que tivesse até mesmo o mesmo jeito de aconselhar, de dizer que as coisas passariam e que um dia ele iria rir de tudo aquilo. Mas tinha, e as palavras eram muito parecidas com a da última conversa.

Por mais que tentasse comprovar sua tese, ele não conseguia. Seria fácil desmascarar o impostor. Bastaria falar do acidente. Mas não o faria. A morte dela morreria com ele.

A guitarra aos poucos voltou a ganhar poeira, e bate-papo desfiava tardes e noites afora. Ainda que soubesse da zombaria baixa que lhe fazia quem estivesse do outro lado, as mesmas palavras e maneiras devolviam um conforto que não imaginava mais ver.

De vez em quando, se pegava esquecido do acidente, dos rasgos no vestido azul tingido de vermelho, pensando estar falando mesmo com ela. E tinha medo de estar começando a variar.

Corriam estações do ano e a idéia de desmascarar o engandador se esvaía. Depois de tanto tempo, se dava ao luxo de ser um pouco feliz. Trocavam segredos, conquistas e lamentações, e quase não sentia falta dos bons tempos de conversa de ano e pouco atrás.

Já era próxima a época de formatura, e chegava a sua vez. Quando recebeu os convites, não conseguia pensar em outra pessoa. Convidaria, ainda que soubesse, não fosse.

Tomou um gole d'água, respirou fundo e foi para o quarto, com medo de repetir a sexta-feira da última vez. Mas esperou horas e mais horas, e ela não veio. Não era comum desaparecer sem lhe contar. Dia seguinte, semana seguinte, mês inteiro, e já chegava perto do baile. Sumira. Apelou para o celular. Não atendia. E-mails perdiam-se sem resposta. Faltando dois dias foi que percebeu: o ícone do MSN sumira. Abriu o Orkut, mas o perfil não estava mais lá. Não encontrava o blog, e nem mesmo no Google conseguia achar algum rastro de existência dela.

Como o menino que deixa escapar a linha da pipa, desta vez pôde chorar com todas as lágrimas a que tinha direito, deixando poças secas de sal no parapeito da janela.

sexta-feira, 8 de julho de 2005

Gotas de vidro

Despertou apenas quando o pneu dianteiro chocou-se contra a guia, chamando a atenção dos passantes na avenida. Não pensou em pegar o volante, tampouco teve tempo de fechar os olhos.

Junto ao baque surdo, o horizonte deu meia volta e os pedriscos do asfalto grasnaram ao riscar a pintura cinza do capô. Um poste metálico aproximou-se violento, e não passou impune pela trajetória embriagada do pequeno carro.

Silêncio absoluto. As pessoas se juntavam curiosas, e ela ainda tentava entender o mosaico esbranquiçado que se formara a poucos centímetros do seu rosto.

Lentamente, um buraco foi se abrindo. Os cubinhos quadrados se descolavam da placa disforme e se misturavam aos cacos dos faróis deixados na calçada.

Despedindo-se, em cada pequeno grão de vidro que se libertava a menina via perder-se um pedacinho de sua vida.

Aqueles três juntinhos eram o sorriso que sua mãe lhe dera ao fechar o portão. O que caíra sobre a sua testa, a paixão que deixara ir embora. Esse grandão, as conversas na escadaria da escola.

Nas borrachas descoladas, as discussões em vão que a afastaram de seu pai. No retrovisor desalinhado, a amiga que lhe emprestara os ombros na última desilusão. Na fumaça quente que se misturava aos pedaços de plástico estilhaçados, a sensação de uma estrada que dava numa porteira fechada.

Vieram luzes vermelhas, faixas, fardas, gritos, olhares chocados repreensivos. Vieram macas, um dois três, mantas térmicas, imobilizadores. Vieram sirenes, guinadas e um jaleco branco.

O som voltou e os contornos pouco-a-pouco retomaram sua nitidez. "Está tudo bem, só fiz um curativo no tornozelo."

No dia seguinte, ao subir no ônibus para voltar ao trabalho que consumira toda a sua noite e a fizera dormir ao volante, seu estômago ficou embrulhado. Lembrou-se da pilha de trabalhos atrasados pra faculdade. E da multa na conta do telefone. E da pressão da família para que arranjasse um tempo para ir à igreja. E do dinheiro que prometeu guardar para comprar o novo guarda-roupa.

Naquele momento, doeu mais a sensação de perder a vida no varejo, como vinha fazendo, do que jogá-la contra um poste em plena Radial Leste.

quarta-feira, 29 de junho de 2005

Ramalhete de flores

Depois que perdeu o ponto na 25 de Março, foi vender flores no farol. Aquele não era um bom dia. Estava frio, chuviscava, e não havia quem se animasse a abriar a janela do carro ou levar a namorada para passear.

Desde manhã, vendera apenas dois macinhos. E olha que já era quase meia-noite. Estava com frio, as pernas bambeavam, mas as dezoito rosas do buquê, bem divididas em pacotinhos de três em cada, já começavam a escurecer nas pontas, e amanhã não prestariam mais.

Além de tudo, tinha o caderno da Leninha. Com o que ganhara naquela semana, só dava para o almoço e a janta, e olhe lá. Já era a segunda vez que a menina falava, e as palavras calaram em seu coração: "Pai, hoje a professora me disse de novo que eu não posso ir mais na escola sem caderno."

Mas os carros rareavam, e os que vinham agora tinham mais medo, sequer paravam no farol. Ficar ali não iria ajudar. Juntou com carinho as rosas dentro do paletó e respirou fundo para encarar os sete quilômetros que o separavam de casa.

O chuvisco engrossou, e o obrigou a abrigar-se no toldo de uma papelaria. Não suportou ficar ali, pensando que bem poderia quebrar a vitrine e livrar o peso da consciência. Não era do seu feitio.

Já estava ensopado, e passou em frente ao último boteco aberto antes da ponte. Hesitou em entrar, gastar os parcos cinco reais que ganhara naquele dia mirrado para afogar as máguas na cana. Não podia. Seria muito desrespeito com a Rita, que o esperava acordada, e iria levantar cedo para levar Leninha à escola.

Passando sobre o mal cheiro do rio, encostou no parapeito e pensou se não seria mais fácil cair dali e acabar com tudo de uma vez. Também não fazia o seu tipo. Mas poderia pelo menos jogar as flores, arremessá-las bem longe, espalhar pétalas escarlate naquele cinza mórbido e vingar-se de sua condição miserável.

Com a mão direita, segurou firme nos dezoito pequenos caules. Esticou os braços para trás, enrijeceu os músculos e mirou em um pneu que boiava ao longe. Não deu.

Naquela noite, pela primeira vez em seus trinta e três anos, Rita recebeu flores.