segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Grávida de palavras

Estava grávida de palavras. Sentia que estavam já quase saindo de suas entranhas, perto do momento de parir. Andava inquieta pelos cantos, a mexer no cabelo, cutucar as unhas, beliscar pedaços de queijo e toucinho na geladeira. Quando mais comia, sentia que as palavras tentavam devorar o alimento que colocava goela abaixo, e se empanturrava mais, estufando a barriga pequena, já farta de guloseimas e de letras em formação.

Não sabia ainda se seria um livro, poema, romance, manifesto ou até mesmo um bilhete. As contrações vinham fortes, mas não chegava a hora de botar as criaturas para fora. Seriam gêmeas? Trigêmeas? Poligêmeas idênticas? Era difícil medir o grau de irmandade de palavras.

Tinha certeza, apenas, de que não seriam fracas. Junto delas havia gestado um pouco de indignação, de idéias contidas, de frases inacabadas e vontades de gritar. Certa vez, sua revolta crescera tanto que pegou uma faca e colocou o metal afiado sobre o pulso, brincando de cortar a pequena linha que separa a vida da morte.

Surgiu outra solução. Em vez de derramar sangue sobre o assoalho por culpa de idéias controversas, resolveu derramar tinta azul sobre papéis, e desde então engravidou-se de palavras.

Se tinham pai? Tinham vários, mas ela não tinha certeza de quem realmente era. Poderia ser a escola, que sempre reprimira sua vontade de se manifestar, ou os pais, que não a entendiam, por mais que se esforçassem. Mas ela acreditava, mesmo, que era produção independente. Nessa época de clones, DNA e o escambau, já não era tão estranho que os filhos nascessem só de mãe.

A parteira poderia ser a velha e boa caneta, uma máquina de escrever antiga que o avô abandonara empoeirada num canto, ou até mesmo as teclas tecnológicas do laptop. O importante é que nascessem em um ambiente limpo, livre de interferências do telefone, dos futuros tios ou da luz excessiva que entrava pelas janelas naquele verão de aquecimento global.

Não se preocupava muito com a criação. Nasceriam fortes, direitas. Algumas correçõezinhas aqui e ali resolveriam qualquer qüiproquó. Atentava-se apenas para o rumo que poderiam tomar. Se fossem demasiado revoltosas, trariam complicações à mãe, certamente.

Nove meses não seriam necessários. Gestação de palavras não se faz assim, de lei biológica. Algumas nascem quase cuspidas, no quente da emoção. Outras necessitam muito tempo para conseguir se livrar do útero, e há ainda as que se prendem à mãe como canguru, se protegendo do mundo alheio enquanto não se fortalecem por completo.

E foi assim, de tanto cuidar da beleza e dos finos dotes que desejava imprimir às novas criaturinhas, que acabou por perdê-las. Nasceram feias, tortas, despejadas em um caderno azul que deixara ao lado da cama numa daquelas noites de calor suado.

Rejeitadas pela mãe, que não conseguiu realizar nelas seus desejos, foram abandonadas em uma lata de lixo na esquina. Meses depois, a menina viu na TV o fantástico caso do mendigo que se tornara fabuloso escritor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi Amigo! Entrei muitas vezes aqui esperando ler suas pérolas... finalmente mais um texto maravilhoso... Estou com saudades de você. Vai ficar aqui no carnaval?? Meu aniversário é na terça, dia 28, vai me dar o privilégio da sua companhia?
beijão,
Li

Anônimo disse...

Iberem (faz tempo que eu não te chamo assim, né?), lindo texto! Leve, tão leve, que, pela gravidade do tema, chega a ser cínico. Por que eu sempre me vejo nas suas personagens?