quarta-feira, 29 de junho de 2005

Ramalhete de flores

Depois que perdeu o ponto na 25 de Março, foi vender flores no farol. Aquele não era um bom dia. Estava frio, chuviscava, e não havia quem se animasse a abriar a janela do carro ou levar a namorada para passear.

Desde manhã, vendera apenas dois macinhos. E olha que já era quase meia-noite. Estava com frio, as pernas bambeavam, mas as dezoito rosas do buquê, bem divididas em pacotinhos de três em cada, já começavam a escurecer nas pontas, e amanhã não prestariam mais.

Além de tudo, tinha o caderno da Leninha. Com o que ganhara naquela semana, só dava para o almoço e a janta, e olhe lá. Já era a segunda vez que a menina falava, e as palavras calaram em seu coração: "Pai, hoje a professora me disse de novo que eu não posso ir mais na escola sem caderno."

Mas os carros rareavam, e os que vinham agora tinham mais medo, sequer paravam no farol. Ficar ali não iria ajudar. Juntou com carinho as rosas dentro do paletó e respirou fundo para encarar os sete quilômetros que o separavam de casa.

O chuvisco engrossou, e o obrigou a abrigar-se no toldo de uma papelaria. Não suportou ficar ali, pensando que bem poderia quebrar a vitrine e livrar o peso da consciência. Não era do seu feitio.

Já estava ensopado, e passou em frente ao último boteco aberto antes da ponte. Hesitou em entrar, gastar os parcos cinco reais que ganhara naquele dia mirrado para afogar as máguas na cana. Não podia. Seria muito desrespeito com a Rita, que o esperava acordada, e iria levantar cedo para levar Leninha à escola.

Passando sobre o mal cheiro do rio, encostou no parapeito e pensou se não seria mais fácil cair dali e acabar com tudo de uma vez. Também não fazia o seu tipo. Mas poderia pelo menos jogar as flores, arremessá-las bem longe, espalhar pétalas escarlate naquele cinza mórbido e vingar-se de sua condição miserável.

Com a mão direita, segurou firme nos dezoito pequenos caules. Esticou os braços para trás, enrijeceu os músculos e mirou em um pneu que boiava ao longe. Não deu.

Naquela noite, pela primeira vez em seus trinta e três anos, Rita recebeu flores.

domingo, 26 de junho de 2005

Lápis e chocolate

Na frente da prateleira de chocolates, surgiu do nada a menina com uma caixinha vermelha nas mãos. "Tio, você compra essa caixa de lápis de cor pra mim?" Automaticamente, a cara de tristeza e a quase mentira de sempre: "não tenho..."

Magrinha, chinelo nos dedos e uma cara de ter lá pelos seus sete ou oito anos. Roupas simples, desbotadas e limpas. Não se parecia com as crianças que o costumavam parar para pedir esmola.

Paralisou-se quando se deu conta da burrada. Não comprava bala no farol, não dava dinheiro, e até comida já pediram e ele negou. Mas o quê de mais nobre haveria uma criança de pedir que não fosse uma caixa de lápis de cor?

Sentiu-se pesado, gordo, asqueroso dentro de seu tênis de marca e seu cartão de crédito no bolso. Saiu desesperado em busca da menina, e a encontrou já na fila do caixa. Estava ao lado de um senhor de calças sujas, camiseta amarrotada e voz serena: "Tudo bem, vai. Eu compro pra você".

A menina, timidamente, acrescentou ao presente um apontador e uma borracha. Ele, envergonhado, voltou à gôndola dos quitutes e levou mais duas barras pesadas de chocolate, na esperança de acalmarem-lhe os nervos.

domingo, 12 de junho de 2005

Onde ainda há sono

Foto: Iberê Thenório
Praia do Sono, no sul de Paraty Posted by Hello

Uma hora e meia de trilhas íngremes separa a Praia do Sono do triste destino de seus vizinhos Laranjeiras e Trindade.

Foi um pescador quem me falou: o Sono é o que foi há pouco tempo todo aquele canto de Paraty. Areias tranqüilas, chapéus-de-sol deixando folhas sobre o mar, ranchos de madeira à beira da praia. Sem ruas nem luz elétrica.

Só resistiram as praias escondidas. Do outro lado do morro, exemplos opostos de destruição. Em Laranjeiras, são os aterros para os barcos aportarem, as guaritas, as cercas intimidadoras. Em Trindade, o crescimento desorganizado, as ruas cheias, a orla tomada por pousadas e campings montados às pressas.

Mas o que se vai fazer contra a horda de desesperados por um lazerzinho à beira-mar nos feriados prolongados? E a arrecadação de impostos das cidades praianas? E os caiçaras desempregados?

As soluções sempre apontam contra a natureza, cuja única defesa são os ângulos agudos, ainda intransponíveis, da serra do mar.