terça-feira, 24 de outubro de 2006

Nó de forca

Parado em pé, com as mãos cruzadas atrás da cintura, sentia um pingo de suor fazendo-lhe cócegas ao lado do olho esquerdo, mas não podia levantar os braços. Com lágrimas corpulentas e soluços descontrolados, sua mãe não conseguia esconder o desespero por perdê-lo assim, tão novo, e tirava dele o centro das atenções. O nó apertado no pescoço e o padre ansioso à espera do algoz lhes faziam pesar ainda mais a culpa, que até então não havia aparecido de forma tão sólida. Naquele momento, já não havia idéia mirabolante que pudesse tirá-lo da forca.

Entorpecido pelas tantas reviravoltas que sua vida dera nos últimos cinco meses, torcia com toda a força para o acontecimento de apenas mais uma: que a noiva não chegasse. Apesar de muito ciente da impontualidade dela, havia um fiozinho de esperança de que o atraso fosse definitivo. Carro roubado, rasgo no vestido, atentado, assalto, qualquer coisa servia naquela hora.

Os padrinhos, em meia-lua no altar, formavam dois grupos de expressões distintas. Do lado esquerdo, os sorridentes alisavam a barriga orgulhosos de dar cabo à última solteira feia da família dos Moratti. À direita, os Bezerra não se atreviam a fazer cara de contentes. Amparando a mãe, os amigos do noivo não se davam ao trabalho de esconder a contrariedade, e só haviam aceitado o convite por saber que o pai se esforçara por mais de três semanas, mas não conseguira demovê-lo da idéia. Não havia outro caminho que não fosse subir no altar.

A verdade é que Marquinhos se movia pelo medo, e a braveza do sogro superara a do pai. No momento em que Miriane voltou do banheiro segurando na ponta dos dedos a pequena fita branca de papel pintada de azul, em poucos segundos um tufão devastou a vidinha de final de adolescência. Arrancou os CDs da prateleira, despregou os pôsteres da parede, varreu as revistinhas de violão, desfolhou as apostilas do cursinho, levou para sempre os amigos da cervejada. Agora, tudo o que conseguia ver eram os bigodes grossos de Aristeu, gritando: "Engravidou, tem que casar!"

E não foi muito diferente. O que ele não havia previsto era a empolgação da família da menina. Em uma semana já tinham planejado o bifê, os eletrodomésticos da casa nova, o hospital em que nasceria o bebê e tudo mais o que se pudesse arrancar dos avós paternos, que imploravam para que o filho entendesse que gravidez, naquela época, já não era mais sinônimo de casamento.

Durante quatro meses e meio, o casal peregrinou por shoppings, lojas de móveis, decoradores, ourives, até chegar o momento que Miriane mais esperava: o alfaiate.

Descalça sobre o banquinho, exibia orgulhosa a medida das curvas que enlouqueceram Marquinhos e os fizeram transar sem camisinha aos dois meses de namoro. Foi assim, no passa fita daqui, prega dali, mede acolá, que a menina perdeu o equilíbrio, e Vítor Marcelo – ou Vitória Marcelle, como torcia a mãe – forçou a reunião das famílias a duas semanas do casamento, numa cerimônia de enterro.

E se a fitinha do teste de gravidez levara dele os sonhos da juventude, os torrões de solo vermelho chocando-se contra o branco do caixãozinho faziam-no velho de vez, enterrando ali o pouquinho de vida que o futuro lhe reservava.

Quinze dias depois, ao pé do altar, o gogó enroscava no nó da gravata no momento em que o menino olhava para a mãe, desconsolada. As mãos dos músicos sobre as trombetas começavam a suar, esperando a noiva atrasada, e um burburinho chacoalhava os quadros da via sacra pendurados na catedral.

Na espera que se esticava, as crianças se ouriçavam, despenteando o cabelo que as mães carinhosamente haviam alinhado. Um moleque baixinho, desses na idade dos porquês, não agüentava mais ficar sentado. Na sua inquietude, saiu desbravando os cantos da igreja. Foi assim que encontrou uma portinha aberta, como a de um banheiro, e depois da porta, uma corda pendurada.

A badalada inesperada do sino disparou o coração de Marquinhos. Num lampejo atlético, suas pernas seguiram o coração, e dispararam também, atravessando velozes o tapete vermelho que cruzava a multidão. Em passadas ofegantes, o noivo quebrava o compromisso que o unia às centenas de convidados levados por Aristeu.

As cabeças todas viraram afoitas para a porta, por onde o menino desaparecia, enquanto um leve esboço de sorriso se fazia sob a maquiagem que escorria no rosto da mãe.