sábado, 21 de março de 2009

Mardita luz elétrica

Lá na roça, pelo menos uma vez por semana a energia elétrica desaparecia. Era sempre nos piores momentos. Quando eu estava todo ensaboado no banho, quando a novela chegava perto do fim, quando estava chovendo e tínhamos que estancar as goteiras.

– Mãe, acabou a força!

A verdade é que eu e meus irmãos gostávamos muito. Tirando o banho frio, a falta de energia era só alegria. A família se reunia em volta de dois lampiões a gás, e meus pais eram obrigados a inventar algum jogo para nos entretermos até a hora de dormir. Ficávamos todos em volta da mesa da cozinha, ouvindo o chhhhhh do gás saindo e se transformando em luz.

O único momento em que me passava um frio pela espinha era na hora em que as lâmpadas se se apagavam de repente, e com o fim do barulho da televisão surgiam todos os roncos, estalos e rumores do mato que rodeava a casa. Eu já sabia o que minha mãe iria pedir.

– Iberê, vai pegar os lampiões enquanto eu busco o fósforo! – ou o contrário.

Naquele pequeno espaço de tempo em que a escuridão dominava, e eu enfiava a mão na gaveta do armário procurando a caixinha áspera dos palitos de fósforo, sempre vinham à memória as histórias de assombração que o nosso vizinho, o Marcelo, nos contava.

Ele era um dos poucos ali nas redondezas que sabia descrever, com todos os detalhes, a fisionomia de um saci. Um negrinho pequeno, feinho que dói. Andava pitando um cachimbo velho e aparecia de
noite, quando os cavalos estavam dormindo. Assustava e fazia trança na crina dos animais. Quando era de madrugada e os bichos começavam a se agitar muito, era batata: tinha saci rondando o curral.

Mais intrigante era o boitatá, que só aparecia nos brejos. Era uma luz muito forte, que passava rápido. Às vezes surgia longe, no céu, outras vezes tirava faísca das calças da gente. Mas o Marcelo não sabia que mal a tal cobra de fogo poderia fazer pra gente.

Perigoso mesmo era o lobisomem. Nas noites de lua cheia, batia de noite na porta das casas, pedindo sal. E ai de quem não tivesse! Não havia fuzil que desse conta do bicho.

Quando perguntávamos se assombração existia mesmo, ele garantia que já tinha visto várias, e que eram muito comuns quando o Nhô Bino, seu pai, era menino. Agora já não havia mais tanto. Elas gostavam mesmo era do escuro, e quando chegou a luz elétrica pararam de aparecer.

Na época, eu não acreditava muito, não. Mas hoje, pensando bem, o Marcelo estava certo. Foi tudo culpa da luz elétrica.

Pólvora, bucha e pedriscos

Naquele tempo, a gente morava no meio do mato. Era uma casinha branca feita de tábuas, e ficava no pé da montanha. Uma estrada de terra, cercada de árvores, dividia o pasto da floresta e levava até o topo do morro, onde ficava a casinha do trator.

A brincadeira preferida minha e do meu irmão era subir até a casinha do trator e descer de bicicleta. A estradinha era cheia de buracos, formados pela chuva, que deixavam a aventura mais interessante. Uma vez, a roda da bicicleta do Cauê entrou num desses buracos, a mil por hora. Foi um deus-nos-acuda. Meses para saírem todas as casquinhas dos arranhões.

A casinha do trator era uma choça com três paredes de madeira podre. Quatro postes grossos nos cantos, feitos de aroeira, seguravam a estrutura. Como não esperaram a aroeira secar para enterrar os postes, os troncos brotaram, e a pequena casinha ficou esmagada entre quatro árvores.

O dono do trator era o Marcelo, que andava pra cima e pra baixo puxando um burro velho, sempre seguido por alguns cachorros. Como o trator não tinha bateria, tinha que ser deixado lá em cima, pra pegar no tranco. Lá de casa a gente ouvia: pápápápá. Era ele ligando o trator, tirando uma fumaça grossa do Massey Ferguson enferrujado.

Sempre de camisa branca suja de terra, a diversão do Marcelo era contar histórias pra criançada. Ele era solteiro e morava sozinhho em uma casa grande de tijolos. Só de tijolos. Não tinha piso, reboque, nem forro. As portas e janelas eram de madeira velha, acinzentada. Como era o único dos cinco irmãos que não tinha casado, acabou dividindo com os cachorros o casarão quando o pai, o Nhô Bino, morreu.

A cozinha era o maior cômodo da casa. Tinha uma janela em cima da pia, com vista para o esgoto que vazava ali mesmo, no quintal. Do outro lado, no canto, ficava um grande fogão a lenha, sempre com alguma brazinha pronta para ser reavivada. Era lá, no meio dos arreios do burro, sabugos de milho e dos quadros trazidos de Aparecida do Norte, que cada um sentava num canto e ouvia as histórias dele.

Sempre com um cigarro de palha no canto da boca, um dos causos que ele mais gostava de contar era do tiro que havia levado no pescoço. Apontava para as duas armas velhas penduradas na parede, mostrava uma cicatriz meio apagada logo abaixo do queixo, e começava.

Dizia que a espingarda, aquela menorzinha, era arma de caça. Já tinha matado muita paca, capivara, cotia e veado com a bichinha. Era muito antiga, do tipo pica-pau, e não usava cartuchos. Para carregar a munição, era preciso encaixar a espoleta do lado de fora. Dentro do cano, colocava-se pólvora, um pedaço de papel amassado – a bucha –, chumbo e outra bucha. Depois era necessário socar com uma vareta, com muito cuidado pra pólvora não explodir.

A outra ali, maior, era um fuzil, arma de atirar em gente. Um soldado havia dado ao pai dele depois da guerra de 1932. Ele jurava que até hoje, se alguém procurasse com cuidado, ainda dava pra encontrar cápsulas das balas dos fuzis no meio do mato, tamanha tinha sido a briga entre os paulistas e os gaúchos, que subiram pela serra para defender Getúlio Vargas.

Mas o tiro que ele levou não tinha nada a ver com isso, não. O problema foi que algum desavisado havia deixado a espingarda carregada dependurada em cima do fogão a lenha. Com o calor, a pica-pau disparou e acertou o seu pescoço. A sorte é que só tinha pólvora e bucha, não tinham colocado chumbo.

E foi de tanto o Marcelo - que chamávamos de Güelo - contar essa história da espingarda que nós enchemos o saco para ele dar um tiro com a pica-pau. Ele relutou bastante, disse que não tinha espoleta, que já não se vendia mais pólvora no armazém, e que a arma não aceitava cartucho.

Ficou nessa lengalenga, até que um dia alguém apareceu com um saquinho branco de papel cheio de pó preto em uma mão, e na outra uns copinhos de cobre bem pequenininhos. A pólvora e a espoleta. Era o que faltava para vermos a espingarda em ação.

Ele não ficou muito feliz. Disse que a arma era velha demais, que era perigoso atirar com criança por perto, que o tiro podia sair pela culatra. Mas como era questão de honra, catou uma vareta, jogou a pólvora dentro do cano, colocou um pedaço de papel, botou umas pedras - não tinha chumbo - e outro pedaço de papel. Socou bem socadinho e saiu na porta do casarão.

Quando apoiou a espingarda no ombro e alinhou a mira com os olhos, começou a suar frio. Já havia uma meia dúzia de moleques em volta, e começavam a chegar mais. Ele falou que estava ficando muito perigoso, e resolveu melhorar a segurança: pegou uma corda e um barbante. Com uma, amarrou a espingarda em um poste. Com o outro, deu um nó no gatilho. E foi assim, com as pernas bambas, que ele puxou o cordãozinho. Uma, duas, três vezes, e nada da pica-pau atirar.

Todo mundo já estava meio desenxabido quando chegou o Zé, que já era moleque crescido, e começou a caçoar da cena montada. Uma espingarda amarrada no poste! Ele desentrelaçou a corda, trocou a espoleta e colocou uma lata de óleo bem longe, em cima de uma pedra. Falou pra gente se afastar, ajeitou bem a espingarda e bum!

Fez um barulho ensurdecedor e uma fumaceira branca tomou conta do lugar. No meio do cheiro da pólvora queimada, ficou lá a lata, inteirinha, inteirinha.

Depois desse episódio, o Güelo nunca mais voltou a falar do tiro no pescoço. Tirou até a pica-pau e o fuzil da parede, e agora só contava história de assombração.