quarta-feira, 24 de agosto de 2005

Tamagochi

Já era a quarta vez que a mãe batia na porta do quarto, mas ele não respondia. Com a testa apoiada no vidro da janela, tenvava chorar vendo as gotas de chuva escorrerem pela vidraça.

De uma hora para outra, não gostava mais dos objetos do quarto. Olhava o abajur imaginando espatifá-lo sobre as fotos de criança, varrendo a estantezinha dos carrinhos de fricção e o pote de bolinhas de gude, que ainda guardava. Tudo parecia ridículo perto do que sentia. Esfregava os olhos, fazia caretas, e apenas seu estômago parecia querer chorar, esparramando o suco corrosivo pelas entranhas, queimando-o de dor.

As imagens teimavam em persegui-lo, e se repetiam em flashes. O ônibus, a serra, a garoa fina, os ferros retorcidos e o vestido azul sobre a maca, a cor que escolheram para o encontro no terminal Tietê. Não, não era a Régis esburacada, pois sempre fora. Sábados chuvosos também não são incomuns, e motoristas imprudentes qualquer rodovia tem.

Fora ele quem insistira para Daniela vir. Ela hesitou durante meses. Tinha que driblar os pais, arrumar uma desculpa mirabolante, juntar dinheiro e, além de tudo, só poderia ir no sábado e voltar no domingo. E olha que a viagem de Curitiba para lá consumiria pelo menos umas sete horas.

Mas já era hora de vê-la. Fazia exatamente um ano e meio que se conheceram em uma sala de bate papo. Foram meses trocando mensagens todos os dias até ela mandar a primeira foto. Não era do tipo que qualquer um achasse linda. Baixinha, tinha olhos pequenos, pele branquinha, bochechas rosadas e o mesmo cabelo vermelho que viu se confundindo às faixas sanguentas que enrolavam a inerte menina na maca.

Como tudo o que se perde, sabia agora o quanto lhe valia. Gostava dela. Era a única pessoa que entendia suas lamúrias de adolescente, que não o julgava anti-social, a quem podia contar todos seus segredos e medos. Gostava até mais que dos amigos do colégio, que o apelidaram de Tamagochi, o bichinho virtual, depois de descobrirem seu interesse pela menina da internet.

Tudo bem, naquele sábado tiraria a desforra. Iria tocar na apresentação de sua banda na escola. Nunca o viram acompanhado, e não perderiam por esperar. Chegaria de mãos dadas, de gel no cabelo e um sorriso satisfeito. Queria ver quem lhe chamaria de Tamagochi!

Mas inventou de ligar a TV para apartar a ansiedade, e deu de cara com o jornal impiedoso, de ônibus virado e letras brancas no fundo vermelho: "Acidente na Régis Bitterncourt fere 25 e mata menina de 16".

É claro que não poderia ser. O vestido era o combinado, os cabelos iguais aos das fotos, a estrada era a mesma, o celular não atendia, mas era real demais para acreditar. Bastava manter a calma, e tudo iria dar certo. Não poderia ser.

Com mãos trêmulas e sorriso pálido, despedira-se da mãe e fora até o terminal no horário combinado. De longe viu o tumulto de parentes na plataforma, e a cotoveladas conseguiu ver com os próprios olhos o que ainda não podia crer. O ônibus acidentado partira no horário em que ela disse que sairia. A atendente da viação, percebendo o espanto angustiante em seu rosto, perguntou delicada se ele conhecia a menina que falecera. Não, ainda não conhecia.

Desde então estava ali trancado, tentando expurgar por meio de lágrimas um pouco da dor que prometia esconder, mas não conseguia. A inaptidão para chorar, motivo de orgulho quando criança, agora se traduzia em dores de cabeça, vertigens, azias e pontadas no estômago.

Assim foi durante dias e dias. Não teve coragem de ligar para a casa dela, nem de acompanhar o desenrolar da tragédia pela televisão. Não falava com os amigos nem com a mãe, e não ousou sequer chegar perto do computador. Sabia que quando o ligasse todas as marcas dela estariam lá, desrespeitosas pela morte. O catálogo de endereços, as fotos, a carinha no MSN.

Foi apenas depois de dois meses que tomou coragem e ligou máquina. Trabalho de escola, não tinha como não fazer. Mas antes de apertar o primeiro botão, tomou a decisão: não faria um velório virtual. Já sofrera o suficiente, segurando sozinho aquela morte pela TV, e apagar um por um os rastros de Daniela seria remexer uma dor que aos poucos já se dissipava.

Devagar, fazia a vida ir voltando aos eixos. Tentava preencher as noites de bate-papo com ensaios na guitarra, agora sua melhor e única amiga. O estômago calara-se, a cabeça já não doía, e ele conseguia passar horas sem ter que lembrar.

Sentia falta mesmo era dos conselhos, das risadas em conjunto. Pelo menos, agora já acreditava que o peso da fatalidade não era somente dele. Havia poucas chances de algo dar tão errado, mas deu. E ele que ficou, teria que continuar.

Foi quando naquela tarde algo estranho aconteceu. Com a mesma foto da sexta-feira, a da última conversa, uma janela piscou no canto direito da tela do seu computador. "Vc taih?". Como bicho que foge, arrancou o fio da tomada. Afastou a cadeira, e depois de três respiradas a fundo, sobreveio a raiva. Que raios de criatura insensível haveria de fazer uma brincadeira de tremendo mau gosto?

Com os olhos faiscantes, colocou de volta a tomada e foi tirar satisfações com a besta humana que brincava com coisas tão sérias. Mas não estava mais lá. Esperou as estrelas chegarem e o sol voltar, decidido a dar uma tremenda bronca, mas ninguém apareceu.

Alguns dias depois, quando a raiva amainara, apareceu novamente a janelinha. O susto foi quase o mesmo, mas a tomada continuou plugada. "Vc taih?". Ah! Mas ele iria pegar o desgraçado! E resolveu mudar de tática. Se desse bronca, corria o risco de afugentá-lo. Jogo é jogo. Queria ver onde isso iria dar. Com um nó na garganta, mas decidido, começou a responder como se nada tivesse acontecido.

A maneira de conversar era a mesma. Os cás no lugar dos quês, os xises sobre os esses, os tês dobrados e todas as abreviações possíveis, além das caretinhas de pontuação. O desgraçado sabia um pouco dela. Começou a ir mais a fundo, jogando perguntas pessoais. Soube notícias do cachorro, do vizinho chato, dos passeios no Jardim Botânico... De fato, o maldito era de perto. Apelou para intimidades. Desafetos familiares, complexos de magreza, crises de adolescente e até as fantasias sexuais. Era tudo igual. Grande filho da puta!

Só não teve coragem de falar do acidente. Nunca contara a ninguém, e tinha medo estar caindo em armadilhas. Além disso, apesar do mal estar, algum prazer lhe surgia ao conversar com alguém que a conhecia tão bem, e imitava seu jeito com tanta semelhança.

No dia seguinte, voltou da escola inquieto para continuar a conversa. Contou das notas baixas, da eterna distância do pai, do apelido de Tamagochi que tanto o irritava (e que nunca perdera). Desta vez o pegaria. Não era possível que tivesse até mesmo o mesmo jeito de aconselhar, de dizer que as coisas passariam e que um dia ele iria rir de tudo aquilo. Mas tinha, e as palavras eram muito parecidas com a da última conversa.

Por mais que tentasse comprovar sua tese, ele não conseguia. Seria fácil desmascarar o impostor. Bastaria falar do acidente. Mas não o faria. A morte dela morreria com ele.

A guitarra aos poucos voltou a ganhar poeira, e bate-papo desfiava tardes e noites afora. Ainda que soubesse da zombaria baixa que lhe fazia quem estivesse do outro lado, as mesmas palavras e maneiras devolviam um conforto que não imaginava mais ver.

De vez em quando, se pegava esquecido do acidente, dos rasgos no vestido azul tingido de vermelho, pensando estar falando mesmo com ela. E tinha medo de estar começando a variar.

Corriam estações do ano e a idéia de desmascarar o engandador se esvaía. Depois de tanto tempo, se dava ao luxo de ser um pouco feliz. Trocavam segredos, conquistas e lamentações, e quase não sentia falta dos bons tempos de conversa de ano e pouco atrás.

Já era próxima a época de formatura, e chegava a sua vez. Quando recebeu os convites, não conseguia pensar em outra pessoa. Convidaria, ainda que soubesse, não fosse.

Tomou um gole d'água, respirou fundo e foi para o quarto, com medo de repetir a sexta-feira da última vez. Mas esperou horas e mais horas, e ela não veio. Não era comum desaparecer sem lhe contar. Dia seguinte, semana seguinte, mês inteiro, e já chegava perto do baile. Sumira. Apelou para o celular. Não atendia. E-mails perdiam-se sem resposta. Faltando dois dias foi que percebeu: o ícone do MSN sumira. Abriu o Orkut, mas o perfil não estava mais lá. Não encontrava o blog, e nem mesmo no Google conseguia achar algum rastro de existência dela.

Como o menino que deixa escapar a linha da pipa, desta vez pôde chorar com todas as lágrimas a que tinha direito, deixando poças secas de sal no parapeito da janela.

8 comentários:

Anônimo disse...

Sério,
estou mais arrepiada e tocada do que quando vc me contou a idéia...
Nossa Iberê...
mto, mto bom! Vc é ótimo! Vc não tem noção... mto bem escrito, mto boa história...
bjão!

Anônimo disse...

Amor, ódio, paixão, incertezas, solidão, esperança... fim...
Tudo há de obra prima neste conto-pintura.
Excelente!
Parabéns

Anônimo disse...

Simples, com requintes de linguagem na medida certa e uma seqüência de fatos bem montada. E longo (adoro contos longos).

A perda, a cumplicidade, o carinho e a relatividade de tudo isso. Ninguém pode dizer o que é a verdadeira felicidade.

Lindo ensaio de imagem no começo do texto. E um anticlímax desolador no final, ainda que o pior (ou tido como) já tenha sido narrado.

Adorei, Iberê! Mil saudades de você.

Beijos,
Erica

Anônimo disse...

Nossa, Iberê...pirei no seu conto!
Tô sem palavras pra descrever ou precisar quanto ele é bom...parabéns! continue contribuindo para um conteúdo melhor da internet com seus textos :)

Beijos!!

Lily Braun. disse...

e ainda foi inspirado na musa aqui =P

Anônimo disse...

trama muito interessante, não conseguia parar de ler, muito envolvente. Está escrevendo muito bem. Beijão

Anônimo disse...

Fala irmão.. Esta escrevendo muito bem.. meus parabéns.. de verdade.. vc precisa dar algum sinal de vida cara.. rs.. eu sei que isso tbm serve para mim.. tenho saudades de ti sabia?... A gente envelhece, e as grandes amizades vão ficando no passado, isso é ruim.. mas quero que se lembre, que estou sempre aqui, no mesmo lugar... se precisar de qqr coisa irmão, sabe que pode sempre contar comigo, não importa se passou um ou dez anos, você está sempre aqui...
Abraços Fraternos Sempre irmãozinho...
Se cuida.. manda um mail contando como esta tudo...

Anônimo disse...

Para mim, Tamagochi reúne todos os ingredientes necessários a uma boa "short story".

Parte de um argumento plausível, inusitado, maduro; segue por um caminho que, num crescendo, prende a atenção e desperta a curiosidade; mescla pérolas literárias com fatos contemprâneos, virtuais e desaba como uma cortina sobre os nossos sentimentos, fechando tudo de vez, deixando apenas o inconformismo.

Parabéns, Iberê.
É muito bom saber que teu gênio ganha mundo desta forma.
Elcio