sexta-feira, 8 de julho de 2005

Gotas de vidro

Despertou apenas quando o pneu dianteiro chocou-se contra a guia, chamando a atenção dos passantes na avenida. Não pensou em pegar o volante, tampouco teve tempo de fechar os olhos.

Junto ao baque surdo, o horizonte deu meia volta e os pedriscos do asfalto grasnaram ao riscar a pintura cinza do capô. Um poste metálico aproximou-se violento, e não passou impune pela trajetória embriagada do pequeno carro.

Silêncio absoluto. As pessoas se juntavam curiosas, e ela ainda tentava entender o mosaico esbranquiçado que se formara a poucos centímetros do seu rosto.

Lentamente, um buraco foi se abrindo. Os cubinhos quadrados se descolavam da placa disforme e se misturavam aos cacos dos faróis deixados na calçada.

Despedindo-se, em cada pequeno grão de vidro que se libertava a menina via perder-se um pedacinho de sua vida.

Aqueles três juntinhos eram o sorriso que sua mãe lhe dera ao fechar o portão. O que caíra sobre a sua testa, a paixão que deixara ir embora. Esse grandão, as conversas na escadaria da escola.

Nas borrachas descoladas, as discussões em vão que a afastaram de seu pai. No retrovisor desalinhado, a amiga que lhe emprestara os ombros na última desilusão. Na fumaça quente que se misturava aos pedaços de plástico estilhaçados, a sensação de uma estrada que dava numa porteira fechada.

Vieram luzes vermelhas, faixas, fardas, gritos, olhares chocados repreensivos. Vieram macas, um dois três, mantas térmicas, imobilizadores. Vieram sirenes, guinadas e um jaleco branco.

O som voltou e os contornos pouco-a-pouco retomaram sua nitidez. "Está tudo bem, só fiz um curativo no tornozelo."

No dia seguinte, ao subir no ônibus para voltar ao trabalho que consumira toda a sua noite e a fizera dormir ao volante, seu estômago ficou embrulhado. Lembrou-se da pilha de trabalhos atrasados pra faculdade. E da multa na conta do telefone. E da pressão da família para que arranjasse um tempo para ir à igreja. E do dinheiro que prometeu guardar para comprar o novo guarda-roupa.

Naquele momento, doeu mais a sensação de perder a vida no varejo, como vinha fazendo, do que jogá-la contra um poste em plena Radial Leste.

8 comentários:

Erica Watanabe disse...

Ai, que lindo, Iberê! Só você mesmo para escrever essas coisas... você me conhece e eu te adoro por isso.

Pena que é daltônico. É VERDE, PORRA!!!

Beijão :)

Lily Braun. disse...

você escreve muito bem. parabéns. e me desculpe por não conseguir encontrar palavras menos abstratas pra te dizer isso.

Erica Watanabe disse...

Oi, Berexxx, passei aqui para ler novamente o seu (meu) texto. Está lindo e me emociona deveras.

Tem alguma coisa do Mutarelli (do documentário do pessoal), eu achei. Bem legal. Esse momento de perda, de ver a vida de desfazendo. Sem dúvida, alguma coisa mudou naquele momento.

Acho que você deveria escrever mais.

Beijão!

PS: Aliás, é fase, Iberê, você bem sabe...

Ilka Mina disse...

Oi, Iberem! Adoro seus textos... Deve ser dificil (pra quem estah aih em Sampa, p.ex.) nao ver aqueles rostos anonimos nas ruas de uma maneira diferente depois de ler o que vc escreve. Espero que vc tenha copias (ou os originais) muito bem guardados, jah que espero le-los compilados em um livro daqui a alguns anos.

Beijao =)

Anônimo disse...

Lindo, Iberê. :)
Guarda, e, junto, coloca também um making-off. Pode ser legal para você reler daqui uns tempos..
beijão,
saudades,
maíra

Anônimo disse...

Cara, tive a oportunidade de ler seus textos...você é demais... Porque nunca levou um texto seu para lermos no curso? Sacanagem, heim...perdemos a oportunidade de trabalhar com esse material de primeira...Ah, quando publicar seu livro..favor me avisar.
Um grande abraço,

Anônimo disse...

Faltou dizer que o documetário tem sua parcela de culpa no incidente. E viva o varejo!

Anônimo disse...

Iberê... Que bonito, hein??? Já li alguns de seus textos em 2005, lembra? Mto bom este. A descrição lenta do acidente é mto poética. Uma vez quase sofri um acidente mto, mto feio. Como não era eu quem estava dirigindo, eu não tinha a mínima idéia se minha amiga ia conseguir ou nao recuperar o controle do carro. Na hora passou tanta coisa na minha cabeça. Parece mesmo que o tempo pára. Por sorte, machuquei só o joelho. Minha amiga recuperou o controle do carro e cá estamos no mundo. Ando meio tristinha esses dias. Por isso escrevi sobre as coisas importantes. Tanta coisa que a gente acaba deixando de lado, tanta coisa importante. É um enorme clichê, mas que precisa ser repetido, repetido, repetido. Os clichês tb são importantes! Um beijo. Camila.